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O que o futebol pode nos ensinar sobre a pós verdade?

por Gilson Cruz Junior

em JUN/2020

Desde que foi eleita a palavra do ano pelo dicionário Oxford em 2016, a "pós verdade" continua apresentando desafios para a sociedade do século XXI.

 

A despeito da existência de concepções distintas, esse fenômeno é comumente entendido como o declínio da importância dos fatos no processo de formação da opinião pública, em contraste com a ascensão dos apelos às emoções, crenças e ideologias.

 

Trata-se de uma ideia alavancada por eventos decisivos na reorganização das coordenadas geopolíticas mundiais, como a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016 e o resultado do plebiscito que selou a saída do Reino Unido do bloco de países da União Europeia (Brexit). Recebidos com surpresa e perplexidade, episódios como estes demonstraram o poder das “verdades alternativas” sobre a tomada de decisões em nível nacional ou mesmo global, deixando em alerta as instituições e organizações preocupadas com o futuro da democracia e do conhecimento.

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De certo modo, todas essas informações são triviais nos relatos acadêmicos e jornalísticos sobre a pós verdade. No que diz respeito à sua definição, o fenômeno não gera discordâncias entre pesquisadores, intelectuais e ensaístas. Por outro lado, as divergências em relação a ele surgem justamente no momento de sua caracterização. A crescente literatura disponível sobre o tema associa o objeto de discussão a um numeroso e heterogêneo conjunto de fatores e atributos, desde aspectos ligados a paradigmas filosóficos do ocidente, como a pós-modernidade, até macrotendências políticas da atualidade, como reinvenção e fortalecimento de movimentos populistas em todo o planeta. Por essa razão, a pós verdade é um assunto que apresenta diferentes portas de entrada e itinerários reflexivos.

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Nesse contexto, parece difícil não pontuar o protagonismo das transformações associadas ao estabelecimento da cultura digital. Muito próxima ao que o filósofo francês Pierre Levy nomeia de “cibercultura” (Cibercultura, São Paulo: Ed. 34, 1999) essa ideia remete ao conjunto de práticas, valores, modos de agir, pensar e viver criados e influenciados pela generalização das tecnologias digitais. Essas modificações estão intimamente vinculadas à redefinição dos modelos comunicacionais dominantes na atualidade, mais precisamente à gradual perda de hegemonia da comunicação de massa em favor da comunicação reticular. A primeira é profundamente estratificada, sustentada por uma separação rígida entre os profissionais/especialistas que formulam e difundem as mensagens e aqueles que a recebem. Materializado em veículos como o cinema, o rádio, a TV e a mídia impressa, esse sistema opera numa lógica “um para muitos” e foi alvo de diversas críticas que, em especial, se dedicaram ao seu caráter hierarquizado, oligárquico e alinhado a todas formas de status quo

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Por esse motivo, foi (e ainda é) muito celebrada a consagração das modalidades de comunicação em rede. Consideradas vetores de democratização da comunicação, as redes sociais e plataformas de sociabilidade similares contribuíram significativamente com a ruptura – ainda que parcial – das relações de poder intrínsecas à comunicação massiva, auxiliando no processo de “empoderamento” dos indivíduos, retirando-os da posição de meros espectadores/ouvintes/leitores passivos e os elevando à condição de prosumers, neologismo resultante da combinação dos vocábulos producer (produtor) e consumer (consumidor). Desde o surgimento da web 2.0, o modelo arquitetônico dominante dos espaços online tem proporcionado aos internautas uma vasta gama de recursos de expressão e interação. Esse universo de possibilidades é composto por linguagens e gêneros variados, abrangendo tweets do Twitter, fotos do Instagram, stories do Snapchat, vlogs do Youtube, blogs, entre outros. Frente a um arsenal tão rico e diversificado, não estranha que as tecnologias digitais de informação e comunicação sustentem a reputação de serem meios inerentemente libertários e emancipadores.

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Todavia, no solo da utopia digital também germinam problemas inesperados. Se na era de ouro da mídia de massa os maiores desafios envolviam o número limitado de fontes de informação e a possibilidade de manipulação da opinião pública mediante mecanismos de censura e filtros editoriais, a era digital – e seus escassos limites à participação individual – tem revelado a ambiguidade inerente ao atual cenário de abundância informacional. O tsunami de conteúdos que invade diariamente as timelines tem despertado a atenção para o descompasso existente entre o aumento exponencial da oferta de informação e o declínio generalizado da sua qualidade e confiabilidade. Enquanto os meios de massa conviveram por décadas com a acusação de elitismo, por centralizar a responsabilidade pela produção e disseminação da informação na figura de jornalistas e demais especialistas da área, as mídias sociais invertem essa equação, permitindo que quaisquer indivíduos munidos de dispositivos de comunicação básicos  transmitam sua mensagem a qualquer um – contato, seguidor ou inscrito – disposto a recebê-la.

 

Ao mesmo tempo em que impulsiona atores, vozes e discursos subalternos e historicamente invisibilizados, esse sistema também abriu caminho para produção de novos embaraços, como as fake news.

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A pós verdade tem se beneficiado do apagamento de fronteiras estimulado pela cultura digital. Aos poucos, dissolvem-se muitas das hierarquias que garantiram a estabilidade do mundo ao longo dos últimos séculos, tais como: profissional e amador, especialista e leigo, emissor e receptor, informação e entretenimento, fato e suposição, conhecimento e opinião, verdade e ficção. Cada uma delas, representa um conjunto de relações de autoridade que, em outrora, eram vistas como critério e condição inegociável para que uma ideia ou discurso adquirisse valor, visibilidade e credibilidade diante da opinião pública. As redes sociais têm desafiado esse sistema, criando um contexto em que o senso comum passa a ser moldado por um conjunto maior e mais heterogêneo de agentes e forças que não se submetem ao crivo, aos fluxos e protocolos de instituições acadêmicas e midiáticas tradicionais. 

De acordo com o jornalista e escritor ítalo-suíço Giuliano da Empoli, a subversão de valores e a inversão de hierarquias incitadas pela pós verdade detêm uma porção inerentemente lúdica, demonstrando semelhanças com o espírito carnavalesco. Neste festejo, o plebeu se transforma em nobre, o pobre em rico, o tolo em sábio, o louco em lúcido, o súdito em rei. Em outras palavras, o carnaval promove uma espécie de “golpe de estado simbólico”. Essa analogia expõe a pós verdade como uma conjuntura em que liberdade e permissividade frequentemente se confundem, radicalizando-se por meio dos desejos de pertencimento e protagonismo:

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"Durante o Carnaval, não há lugar para o espectador. Todos participam juntos da celebração desvairada do mundo ao avesso, e nenhum insulto ou piada é vulgar se contribui para a demolição da ordem dominante e sua substituição por alguma dimensão de liberdade e fraternidade. O Carnaval produz, naquele que participa, uma intensa sensação de plenitude e de renascimento – o sentimento de pertencer a um corpo coletivo que se renova. De espectador, cada um se torna um ator, sem nenhuma distinção baseada no grau de instrução. A opinião do primeiro que passa a valer tanto quanto, ou talvez mais, que a do expert. Enquanto isso, a máscara coletiva se mudou para a internet, em que o anonimato tem o mesmo efeito de desinibição que, tempos atrás, nascia no momento de se vestir uma fantasia”. (Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar as eleições, Giuliano Da Empoli, São Paulo, Vestígio, 2019)

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Como já foi mencionado, a pós verdade é um fenômeno complexo, constituído por variáveis econômicas, psicológicas, culturais e tecnológicas, não devendo, portanto, ser reduzido a ocorrências isoladas. Graças a essa amplitude, é possível sentir seus sintomas em diferentes campos da vida social, entre os quais, encontra-se o esporte. Diferentemente da política institucional, pode-se dizer que o esporte é um domínio capaz de nos fornecer exemplos mais acessíveis dos modos como a pós verdade se manifesta em situações do cotidiano. Dito isso, proponho uma breve reflexão com o objetivo de aproximar esses universos, tendo como referência uma das principais preocupações da vida pública atual: a desinformação. Sendo a pós verdade comumente encarada como um problema a ser resolvido, advirto que meu propósito não é apresentar respostas tranquilizadoras para o quadro exposto. Busco apenas colocar o fenômeno sob novas luzes, demonstrando sua presença em circunstâncias menos evidentes.

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Constituída por um extenso acervo de práticas, comportamentos e significados, a corporeidade tem no esporte uma de suas principais vias de expressão. Frequentemente associado ao alto rendimento e espírito competitivo, o esporte é um fenômeno de elevada popularidade que atrai não somente os interessados em vivenciá-lo em primeira mão – como os atletas e demais praticantes –, mas também os entusiastas de suas facetas espetaculares e midiáticas. Seja em quadra/campo, seja diante da TV, sua presença dá margem a múltiplas apropriações, a exemplo das situações em que modalidades específicas produzem vínculos de pertencimento e valores socialmente compartilhados. 

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No Brasil, essa relação pode ser facilmente observada na crença pouco contestada de que o futebol representa um dos alicerces de nossa identidade nacional. É uma das particularidades da suposta “brasilidade” latente em cada habitante do país, a qual costuma emergir de forma mais acentuada em ocasiões específicas, como megaeventos esportivos. A Copa do Mundo de futebol é um exemplo emblemático de como o espetáculo esportivo pode exercer fascínio ímpar, fortalecer o sentimento de comunidade e até mesmo interromper o funcionamento regular da vida cotidiana – como percebemos em situações de redução ou mesmo suspensão completa dos expedientes de trabalho em função dos jogos da seleção brasileira.  

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Inclusive, os acontecimentos no palco esportivo por vezes são incorporados aos retalhos de nossa autoimagem e memória coletiva. A marca ainda não superada de cinco títulos mundiais até hoje sustenta a hegemonia brasileira na modalidade, atuando como elemento que, em alguma medida, alimenta o brio e a autoestima da população diante de outros países. Evidentemente, esse sentimento não está imune a tentativas de controle e manipulação, visto que sobre a relação fervorosa com futebol também paira o rótulo de mecanismo alienante, cortina de fumaça que oculta ameaças urgentes e problemas de maior relevância – função intensamente explorada pelo regime ditatorial militar instaurado no Brasil a partir do golpe de 1964. Não obstante, do mesmo modo que os triunfos em campo produzem episódios heroicos e imortalizados, as grandes derrotas também se eternizam no imaginário popular na forma de traumas coletivos. Como esquecer do Maracanazo? Ou ainda, de sua versão mais recente, apelidada de Minerazo, incidente no qual a seleção brasileira, em sua terra natal, caiu de joelhos diante de uma Alemanha implacável, aos olhos de uma torcida atônita e incrédula?

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Para os propósitos deste ensaio, interessa-me uma cicatriz em particular: a derrota brasileira na final da Copa do Mundo da França. Mais precisamente, no dia 12 de julho de 1998, a seleção francesa vencia a equipe tupiniquim pelo incontestável resultado de três tentos a zero. Na época, o indigesto desfecho da partida não foi bem recebido pela torcida brasileira, principalmente devido ao súbito mal estar que levou Ronaldo Nazário – então artilheiro e “astro” da equipe – a ser poupado pelo técnico Zagalo. Campeão do torneio em quatro oportunidades, o futebol brasileiro sucumbiu ante a performance contundente dos donos da casa, que com a vitória escreveram seu nome na história futebol mundial.

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Na época, jornalistas, comentaristas e técnicos se debruçaram durante meses sobre os registros da Copa de 1998, destrinchando replays, entrevistas e bastidores da amarga final, com o propósito de obter alguma explicação plausível para o retumbante fracasso. Na virada do século, o acesso à internet era muito mais restrito e as primeiras redes sociais de maior sucesso, como Myspace, Facebook e Orkut, só ganhariam vida anos mais tarde. Ainda assim, à sombra dos grandes portais de notícias e entretenimento, a rede mundial computadores já permitia a circulação de informações paralelas à imprensa oficial. Dentre os assuntos em evidência, a Copa do Mundo da França também recebeu razoável atenção dos internautas, tendo inclusive alguns relatos amplamente divulgados por meio de fóruns online e grupos de e-mail. Particularmente, um deles destoou por expor e desmascarar a suposta farsa envolvendo a grande final ocorrida no Stade de France. Trata-se de uma carta que reproduzo integralmente a seguir:

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COPA 1998 - Divulgado o escândalo que todo mundo suspeitava!

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Talvez, isso explique a razão do jogador Leonardo ter declarado a seguinte frase: "Se as pessoas soubessem o que aconteceu na Copa do Mundo, ficariam enojadas". Todos os brasileiros ficaram chocados e tristes por terem perdido a Copa do Mundo de futebol, na França. Não deveriam. O que está exposto abaixo é a notícia em primeira mão que está sendo investigada por rádios e jornais de todo o Brasil e alguns estrangeiros, mais especificamente Wall Street Journal of Americas e o Gazzeta delo Sport e deve sair na mídia em breve, assim que as provas forem colhidas e confirmarem os fatos. 

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Fato comprovado: O Brasil VENDEU a copa do mundo para a Fifa. Os jogadores titulares brasileiros foram avisados, às 13:00 do dia 12 de Julho (dia do jogo final), em uma reunião envolvendo o Sr. Ricardo Teixeira (na única vez que o presidente da CBF compareceu a uma preleção da seleção), o técnico Mário Zagallo, o Sr. Américo Faria, supervisor da seleção, e o Sr. Ronald Rhovald, representante da patrocinadora Nike. Os jogadores reservas permaneceram em isolamento, em seus quartos ou no lobby do hotel. A princípio muito contrariados, os jogadores se recusaram a trocar o penta-campeonato mundial por sediar a Copa do Mundo.

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A aceitação veio através do pagamento total dos prêmios, US$70.000,00 para cada jogador, mais um bônus de US$400.000,00 para todos os jogadores e integrantes da comissão, num total de US$ 23.000.000,00 vinte e três milhões de dólares) por meio da empresa Nike. Além disso, os jogadores que aceitarem o contrato com a empresa Nike nos próximos 4 anos terão as mesmas bases de prêmios que os jogadores de elite da empresa, como o próprio Ronaldo, Raul, da Espanha, Batistuta, da Argentina e Roberto Carlos, também do Brasil.

Mesmo assim, Ronaldo se recusou a jogar, o que obrigou o técnico Zagallo a escalar o jogador Edmundo, dizendo que Ronaldo estava com problemas no joelho esquerdo (em primeira notícia divulgada às 13:30 no centro de imprensa) e, logo depois, às 14:15, alterando o prognóstico para problemas estomacais). A sua situação só foi resolvida após o representante da Nike ameaçar retirar seu patrocínio vitalício ao jogador, avaliado em mais de US$90.000.000,00 (noventa milhões de dólares) ao longo da sua carreira. 

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Assim, combinou-se que o Brasil seria derrotado durante o 'Golden Goal' (prorrogação com morte súbita), porém a apatia que se abateu sobre os jogadores titulares fez com que a França, que absolutamente não participou desta negociação, marcasse, em duas falhas simples do time brasileiro, os primeiros gols. O Sr. Joseph Blatter, novo presidente da Fifa, cidadão franco-suíço, aplaudiu a colaboração da equipe brasileira, uma vez que o campeonato mundial trouxe equilíbrio à França num momento das mais altas taxas de desemprego jamais registradas naquele país, que serão agravadas pela recente introdução do euro (moeda única européia) e o mercado comum europeu (ECC). 

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Garantiu, também, ao Sr. Ricardo Teixeira, através de seu tio, João Havelange, que o Brasil teria seu caminho facilitado para o pentacampeonato de 2002. Por gentileza passem esta mensagem para o maior número possível de pessoas, para que todos possam conhecer a sujeira que ronda o futebol!

Gunther Schweitzer
Central Globo de jornalismo

Por favor repassem essa Mensagem para o máximo de pessoas possíveis.

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À primeira vista, percebe-se que se trata de um boato, um hoax. De fato, a veracidade da carta já foi descartada por inúmeras vias, inclusive por aquele a quem a origem da denúncia é atribuída. Há mais de vinte anos negando a autoria do texto, Gunther Schweitzer, que é formado em Educação Física e nunca fez parte do corpo de profissionais da Central Globo de Jornalismo, declarou  que recebeu tanto mensagens de apoio quanto ameaças daqueles que acreditaram no conteúdo do documento, tendo inclusive recebido uma ligação de um promotor de justiça do Rio de Janeiro que lhe ofereceu acesso aos serviços de proteção à testemunha. Mesmo amplamente desmentido, o rumor gerou impactos que ainda não foram inteiramente desfeitos, a ponto de até hoje haver desconfianças sobre a legitimidade da final disputada entre Brasil e França.

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Atualmente, o falso escândalo da venda da Copa de 1998 tornou-se um texto folclórico na internet, dando origem a memes que consistem na produção de versões reeditadas da carta original que, por sua vez, denunciam tramoias fictícias em todo o tipo de competição: desde campeonatos nacionais e estaduais de futebol a reality shows como Big Brother Brasil, A Fazenda e Master Chef. De todo o modo, o que podemos aprender sobre a pós verdade, mais especificamente sobre fake news, a partir do caso descrito?

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A primeira lição é que as notícias falsas são muito mais que simples “notícias falsas”. A rigor, as fake news correspondem a apenas uma entre várias ramificações de um fenômeno mais amplo que tem sido definido como desinformação. Especialista em epistemologia e filosofia da informação, Don Fallis (What Is Desinformation, Library Tendency, Johns Hopkins University Press, 2015) explica que esta ideia não se reduz a um sinônimo de conteúdos inverídicos. Mais do que isso, a desinformação designa uma intencionalidade primária que faz com que os referidos conteúdos sejam pensados, elaborados e difundidos com a intenção de iludir e manipular. Nesse território, além das noticiais falsas, encontram-se anúncios (políticos e comerciais) enganosos, propaganda governamental, fotos adulteradas, documentos forjados, websites maliciosos, registros falaciosos em verbetes da wikipedia. Diante disso, em qual categoria podemos encaixar a narrativa denunciando a suposta venda da Copa de 1998? Tecnicamente, não é uma notícia uma vez que não foi publicada em nenhum veículo oficial da imprensa. Tampouco um trabalho científico, uma vez que não é resultado de experimento, não foi avaliado por pares ou publicado em revista/periódico especializado. Erroneamente reduzida às fake news, a desinformação tende a se instalar em zonas cinzentas e pontos cegos entre diferentes linguagens e gêneros discursivos.

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A segunda lição é: mesmo circulando de modo irrestrito, a desinformação costuma ter um público alvo explícita ou implicitamente definido. Trata-se de um fator que está ligando à recepção e ao potencial de persuasão desse tipo de relato. A mensagem deve ser compreensível a todos, mas suas premissas e enunciados reverberam com maior intensidade naqueles a quem pretende convencer e, principalmente, mobilizar. Diferentemente da ampla repercussão entre os torcedores brasileiros, presume-se que a suspeita lançada sobre a final da Copa de 1998 não teve o mesmo sucesso em cativar italianos, holandeses e tampouco franceses. Sob essa ótica, a desinformação pode revelar muito sobre aqueles que consegue seduzir, mais precisamente, sobre seus valores, representações, visões de mundo, preconceitos e, com frequência, temores. O que a carta descrevendo a venda da Copa de 1998 denota sobre aqueles que a levaram ou continuam levando a sério? Ou ainda o que revelam boatos escatológicos, mas de alcance considerável, como: “Pablo Vittar irá apresentar um programa infantil na rede Globo de televisão com o incentivo da Lei Rouanet”.

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Para facilitar a compreensão dessa correlação, é conveniente pontuar a existência de ao menos três percepções distintas sobre os indivíduos que reproduzem algum tipo de desinformação: 

  1. Estão sendo enganados e por isso precisam ser “educados” para identificar conteúdos falsos e avaliar a confiabilidade das informações;

  2. Agem deliberadamente de má fé com a intenção de enganar terceiros, devendo, portanto, ser desmascarados e, de acordo com a gravidade dos danos causados, punidos;

  3. Estão sob o efeito da willful ignorance (“ignorância intencional”), estado em que, por múltiplas razões, o interesse moral pela verdade é relegado a segundo plano.

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Destoando das alternativas mais evidentes, a última hipótese está diretamente ligada à terceira lição:

 

o apelo por trás da desinformação costuma operar em planos suprarracionais.

 

Sua capacidade de convencimento nem sempre reside em sua coerência lógica ou na razoabilidade da sua argumentação. Em certas circunstâncias, não precisamos estar convencidos da veracidade de uma informação para acreditar nela, o que também não significa que ao reproduzi-la tenhamos a intenção consciente de ludibriar alguém. Em outras palavras, para que sejamos persuadidos, não é necessário que algo seja verdade, apenas que acreditemos que possa ser

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Para o filósofo Lee Mcintyre (Post-truth, Massachusetts,: MIT Press, 2018) tendemos a ignorar fatos óbvios e facilmente verificáveis porque inconscientemente buscamos defender algo que para nós é mais importante do que a própria verdade. Esse “algo” pode variar de acordo com a natureza da informação rejeitada, bem como o contexto no qual se deu a negação. No âmbito do debate político, esse tipo de impulso tende a se desdobrar de situações de maior polarização e radicalização, atmosfera típica de circunstâncias dominadas ou influenciadas por regimes populistas e totalitários. Em cenários como esse, a função social primária da informação se desloca da construção de uma compreensão sólida e fundamentada da realidade para a busca de supremacia ideológica. Como declara Mencius Moldburg, blogueiro em evidência na extrema direita estadunidense: “Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme e um exército” (What Is Desinformation, Don Fallis, Library Tendency, Johns Hopkins University Press, 2015, p. 24).

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Por trás de boa parcela da desinformação criada, validada e amplamente difundida, frequentemente há um gesto discreto de fé e reverência a um partido, instituição ou figura carismática.

 

Mas afinal, por que nos submetemos à vontade de forças que nos governam através da desinformação e nos despertam a ignorância intencional? 

Novamente, afirma-se o paralelo da pós verdade com o universo do esporte. Via de regra, a escolha de nosso “time do coração” não ocorre mediante um processo decisório racional e embasado por evidências e dados empíricos. Trata-se de um vínculo cujo estabelecimento sofre forte influência de fatores doutrinários circunstanciais e afetivos, sobretudo por gestos, vínculos e tradições familiares – como vestir o uniforme do clube, ir ao estádio ou apenas acompanhar partidas pela TV. Pela experiência de torcedor alimentamos, desde a mais tenra idade, um conjunto de paixões identitárias relativamente fervorosas. É graças a elas que torcemos e acreditamos incondicionalmente em nossa equipe, mesmo que isso signifique ignorar quaisquer dados, estatísticas, indicadores de desempenho, derrotas e crises financeiras. Aconteça o que acontecer, nunca mudamos de lado ou “viramos folha”. Em casos extremos, o amor ao clube pode, inclusive, desaguar em paixões obsessivas; num fanatismo dogmático e sectário que irrompe na forma de ações patológicas, violentas e autoritárias supostamente em defesa da honra de uma instituição esportiva.  

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É justamente esse tipo de disposição que a desinformação, especialmente a propaganda política, com frequência busca fomentar. Confirmamos nossa a adesão ao “time” – uma ideologia – a partir de demonstrações regulares de convicção que estão propensas a exigir o ceticismo ou até mesmo a rejeição seletiva de fatos comprovados. Uma das táticas para anular a contundência desses mesmos fatos envolve transformar a desinformação dispersa em sistemas explicativos complexos, diluindo “verdades alternativas” em conhecimentos verídicos, mas descontextualizados e por isso inertes. É assim que teorias conspiratórias afrontam evidências científicas; é assim que evitamos a ferida narcísica de admitir que a equipe francesa apresentou um desempenho superior à seleção brasileira e que, portanto, mereceu a vitória na batalha derradeira da Copa do Mundo de 1998. Trata-se de apresentar narrativas cada vez mais eloquentes e ricas em detalhamento, e, ao mesmo tempo, desacreditar a imparcialidade e o modus operandi de qualquer instituição que ofereça evidências contrárias, como a imprensa, as universidades e os centros de pesquisa.

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Se recorrermos aos conhecimentos da psicologia, veremos que não faltam tentativas de explicar a crença em teorias conspiratórias. Partindo de movimentos como o antivacina, o terraplanismo e os truthers 9/11 (este último um grupo de pessoas que se dedicam a formular explicações conspiratórias para os atentados ocorridos em 11/9/2001, nos EUA), o psicólogo Joe Pierre (What Makes People Believe in Conspiracy Theories?, Psychology Today, 2019) chama atenção para o crescimento alarmante do número de cidadãos estadunidenses que acreditam em algum tipo de relato pseudocientífico ligado à política ou à medicina.

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Vale mencionar que essa é uma tendência global, apresentando-se de modo particularmente preocupante no contexto brasileiro. Recentemente, fomos eleitos o país com a segunda pior taxa do planeta de ignorância em relação à realidade, atrás apenas da África do Sul. (Brasil fica em 2º em ranking de ignorância sobre a realidade, Revista Exame, 2017)

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Além disso, cerca de um terço da nossa população afirmou desconfiar da ciência enquanto sete em cada dez brasileiros acreditam em fake news sobre vacinas, tais como: a vacinação é uma artimanha do governo para esterilizar/exterminar a população pobre; que as vacinas sobrecarregam o sistema imunológico das crianças; ou ainda que estas são responsáveis pelo aumento significativo nos índices de autismo. (Um terço dos brasileiros desconfia da ciência, jornal O Globo, 2019).

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Para Joe Pierre, muitas pessoas que acreditam em narrativas conspiratórias têm a necessidade de um “encerramento cognitivo” (desejo de encontrar explicações onde elas simplesmente não existem) e do anseio de se sentir único, ao acreditar que acessaram uma suposta verdade que a maioria da população simplesmente desconhece. De modo não excludente, também podem apresentar um viés cognitivo chamado “detecção de agência hipersensível” ou “pensamento teleológico”, pelo qual os eventos são superatribuídos a forças, propósitos e motivos ocultos. Outras pesquisas também descobriram que as crenças de conspiração estão associadas a níveis mais baixos de educação e pensamento analítico. Frente a essas situações, Pierre adverte que o escarnio e a ridicularização de indivíduos sob o encanto da desinformação é uma estratégia pouco adequada para enfrentar o problema, e muito menos eficaz que do que a escuta empática – para ele, um bom ponto de partida. Todavia, como estimular posturas pautadas na abertura do diálogo e pensamento enquanto a pós verdade paulatinamente instiga o acirramento de sociabilidades beligerantes de torcida e “fla-flus ideológicos”?

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Assim, percebemos que é possível observar a presença de influências “pós verdadeiras” em vários âmbitos aparentemente improváveis da vida social, a exemplo do esporte. Atualmente, a pós verdade atua como ponto de confluência de forças políticas, tecnológicas, psíquicas e culturais distintas, as quais têm dado novos contornos a empreitadas populistas. Focando-se na luta do “povo” contra as elites e os especialistas, tendências desse tipo dedicam-se a afrontar reiteradamente quaisquer instituições, estruturas e grupos dotados de autoridade sobre domínios fundamentais da vida social: desde a grande mídia e dos estabelecimentos de ensino e pesquisa até a FIFA, Confederação Brasileira de Futebol e as grandes marcas patrocinadoras de clubes de atletas. 

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Gilson Cruz Junior é mestre e doutor em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, nciado em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é professor do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará.

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