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Manifesto Diagonal

 

Um homem, em seu caminho, defronta-se com dois adversários. Um deles o acossa por trás, o outro bloqueia o caminho à frente, e ele luta com ambos. Talvez não perceba que o primeiro o ajuda na luta contra o segundo, pois o empurra para frente, e que o segundo o auxilia contra o primeiro, já que o empurra para trás. E o que este homem deseja é saltar fora da linha de combate e colocar-se na posição de juiz sobre os dois  adversários que passariam a lutar entre si.

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Esta parábola de Franz Kafka  é objeto de interpretação de Hannah Arendt em seu livro "Entre o passado e o futuro", para quem a cena é um campo de batalha entre as forças do passado e do futuro; e o homem, para manter-se em seu território, precisa combater ambas. Todavia, se há luta, é porque há presença humana, sem a qual as forças do passado e do futuro se  neutralizariam. Arendt observa ainda que, na parábola kafkaniana, o passado é visto como uma força, e não como um fardo, do qual os vivos tem que se livrar para rumar ao futuro. O passado não nos puxa para trás, ele nos empurra para frente.

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A personagem de Kafka sonha em fugir para uma região além e acima da linha de combate. Para Arendt, é exatamente este o sonho da metafísica: uma esfera intemporal, fora do espaço e suprassensível como a região mais adequada para o pensamento.

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Como exercitar o pensamento sem que se seja forçado a saltar fora do tempo humano?

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Hannah Arendt propõe outra saída. É que a presença humana desvia as forças do passado e do futuro de sua direção original, do que resulta uma terceira força "diagonal", ao longo da qual poderíamos encontrar um espaço suficientemente afastado do passado e do futuro para avaliar as forças que se digladiam. E a atividade de pensar criticamente - conclui Arendt - depende exatamente dessa capacidade de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro.

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Essa parábola de F. Kafka e sua interpretação por H. Arendt inspirou-nos inicialmente. Como somos - Mauro e Bruna  - originários do e atuantes no campo da educação (no sentido amplo do termo) e da Educação Física, neles reconhecemos dilemas, dicotomias, oposições (teoria x prática, natureza x cultura etc.), que se tentam superar às custas de anular ou as forças do passado ou as forças do futuro, e assim prosseguir caminhando em linha reta. Tal opção não proporciona avanços de fato, apenas nos ilude com falsas superações conceituais, que pouco mudam a vida concreta. Pois a vida é muito mais que uma sucessão contínua de eventos ou muito mais que um campo de abstrações inteiramente disponível à manipulação e ao nosso controle mental. Pelo fato de ser viva, e de estar  sempre em movimento,  não é possível acessar a vida diretamente, de chofre, em sua totalidade.

A vida como objeto cognoscente só pode ser acessada por representações, por signos.

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Na busca do conhecimento, é preciso ser prudente e não almejar o impossível (a "totalidade") já no ponto de partida. Guiados pela razão, ao modo apolíneo, desviamos nossa atenção para os fragmentos e modelamos uma sociedade feita de um amontoado de tijolos sem fundação. Ainda que dominemos as partes, chega um momento em os fragmentos daquilo que sabemos já não se assemelha com a novidade que se apresenta. E aí, recomeçamos outra vez o jogo da análise das partes... Sentimos que outras arquiteturas para o pensamento são requeridas e novos (ou antigos?) modos de pensar a passagem do tempo precisam ser evocados.

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Segundo a mitologia grega, a ideia de tempo divide-se em Chronos e Kairós. O primeiro seria o ritmo linear e continuo do relógio (símbolo da produtividade) adotado pelo ocidente como principal modo de viver e pensar sobre a vida. Kairós, por sua vez, traz a força do processo, do fluxo, e se faz perceber a partir da experiência psicológica que oferece recursos da memória para que as lembranças, sensações e pensamentos possam ser atualizadas no tempo presente. Ao modo dionisíaco, é uma forma de experienciar o tempo que ainda permanece na cultura dos povos indígenas do mundo, e alguns nichos de pensamento no Oriente.

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Bergson vai elaborar com bastante consistência a ideia de duração e processo relativos ao "tempo" e, com isso, nos ajudar a caminhar neste pensamento “diagonal” proposto por Arendt. No conjunto de suas ideias ressoa esse tempo Kairós, constituindo uma “arquitetura do saber” que permite reflorescer os pensamentos intuitivos.

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Entendemos que a “diagonal” é o gerúndio da experiência que faz da vida uma estrutura “vivente”. Ela não nega o passado, nem se ausenta do presente. É uma força vetorial que quer se conectar com o profundo da vida-vivente, e para isso, não se fixa em um “tempo” ou na necessidade de instituir um “saber eterno”. Esta força, alimentada por intuições, pode se ramificar em fluxos “diagonais”, ou, na ocasião rara de uma atenção plena, pode assumir um único vetor “diagonal”.  Analogicamente, esta ideia “diagonal” pode ser encontrada no fenômeno sináptico e da neuroplasticidade, nos rizomas de Deleuze, na semiose de Peirce, no pensamento ecossistêmico, na abordagem sociocrática.  Ela se faz em rede e não em trilhos.

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Muitas daquelas oposições e dicotomias que imobilizam o campo de construção do saber talvez sejam  reflexos de disputas institucionais, de lutas pelo poder, e não problemas epistemológicos "puros". Mas como não opomos ciência e política, precisamos de novas estratégias, as quais aqui denominamos "diagonais". No plural, porque não há apenas uma diagonal, mas muitas, as quais se entrecruzam e abrem infinitas possibilidades ao pensamento e à ação.

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E para nós pensamento e ação também não se opõem, estão ambos presentes na noção de conduta do pragmaticismo peirceano. Portanto, os saberes diagonais são para nós condutas: de imaginação (imagina-ação), de afeto (afeta-ação), de emoção (ato de movimentar).

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Nos inspiramos também nas condutas de inúmer@s professor@s (na educação básica e superior), artistas, profissionais liberais em vários campos que,  sem pré-conceitos e pré-juízos, criam, inovam e apresentam respostas a situações concretas, situações estas às vezes envoltas em miséria, violência, desigualdade social e degradação ambiental. Todavia, a produção de saberes diagonais não é exclusividade de profissionais especializados, está presente também na cultura popular, nas comunidades das periferias urbanas, nas comunidades tradicionais, na cultura da infância. 

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Ademais, sabemos que o conhecimento somente avança quando colocamos em dúvidas nossas crenças, quando nos abrimos à (auto)crítica. Não mais acreditamos que o status quo seja capaz de alimentar este processo vital, embora reconhecendo que as instituições não são dispensáveis. Tampouco é possível fazê-lo de modo solitário. A gestação de saberes diagonais exige a interlocução entre pessoas que, não necessariamente da mesma área do conhecimento, se debruçam sobre objetos comuns, instaurando possibilidades de interação de saberes de diversos campos. As tecnologias digitais de informação e comunicação detêm potencialidades a serem exploradas nessa direção, para além dos vícios das redes sociais.

 

Por isso propomos a "crítica colaborativa" como modo privilegiado para a produção de saberes. Quando se reflete sozinho, há o risco de assumir sempre os mesmos caminhos de pensamento, pela força do hábito, ainda que se exerça a autocrítica. O solipsismo não abre espaço à força da neuroplasticidade que viria a partir do confronto com outra ideia. Na alteridade isso se faz possível: não para promover o consenso, mas num dissenso – que comporta a diferença e o comum – e, quando possível, o novo. Tal entendimento comporta também o erro, que foi banido nas armadilhas do produtivismo. Kairós é o tempo que nos permite errar e refazer caminhos diagonais. A interlocução pode denunciar a ilusão das "nossas verdades".

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A "movimentalidade" é nosso objeto, nosso pretexto, nosso pré-texto. Na língua portuguesa, o sufixo -dade é formador de substantivos abstratos. Por isso, "movimentalidade" é suficientemente genérico para conectar diversos campos do saber: Arte, Educação, Educação Física, Dança, Psicologia, Psicanálise, Biologia, Física, Neurociência, Filosofia, Semiótica, Sociologia, dentre outros. E nas "diagonalidades" não há privilégio para qualquer deles. Por isso, que fique claro, não estamos propondo um novo campo científico interdisciplinar ou uma "superdisciplina". Não estamos tratando aqui do "movimento humano" como objeto científico especializado, mas do "poder", da possibilidade, da potência do movimento para configurar e re-configurar a expressividade (corporal) humana, para significá-la, e portanto produzir conhecimentos com e sobre nosso estar-ser-intervir-no-mundo.

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Nosso desejo é que os saberes diagonais inspirem novos problemas de pesquisa, outras abordagens teórico-metodológicas que, a partir do nosso objeto, construam novas diagonalidades. Enfim, novas condutas nos campos de conhecimento já existentes, num fluxo de contínuas transformações.

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Não temos a pretensão de julgar que nossas pró-posições sejam absolutamente inovadoras, ou que sejamos nós - Mauro e Bruna - desbravador@s de caminhos inexplorados. Pelo contrário, sabemos que há pessoas - sobretudo jovens - que, sem prestígio e sem holofotes, em várias instituições (formalmente rotuladas como "educacionais" ou não) trilham as diagonalidades que, de início, emergem apenas como potências.

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Este "Manifesto Diagonal" é um convite inicial à interlocução; e interlocução, para nós, é sobretudo ouvir primeiro, depois falar. Portanto, a gestação de saberes diagonais demanda que as ideias tenham tempo para repousar, e que a fala se interrompa por alguns instantes para a escuta de outros discursos.

Estes são nossos pontos de partida. 

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Estamos na escuta.

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planeta Terra,  16/09/2019

 

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