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Sobre neuro e neuras das abordagens neurais na Educação

por Edison de J. Manoel

em DEZ/2019

Em 1989 quando eu cheguei no Departamento de Psicologia da Universidade de Sheffield (Inglaterra) para iniciar o programa de doutorado havia no ar um clima de euforia e excitação. A minha sala ficava num corredor povoado por docentes que pesquisavam as bases neurais da aprendizagem, da visão, do comportamento social de mamíferos. Havia ainda os que se uniam a eles para modelar comportamentos e funções usando de algo inovador na época, as redes neurais. O sentimento que experimentei na época coincide com a descrição dada por Vladimir Safatle em seu livro “Introdução a Jacques Lacan” (Autêntica, São Paulo, 2018) na passagem em que ele diz:

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"A partir dos anos 1980, e principalmente depois da década de 1990, parecia consensual a noção de que psicanálise entrara em ‘crise’. Ultrapassada pelo avanço de novas gerações de antidepressivos, ansiolíticos, neurolépticos e afins, a psicanálise foi vista por muitos como uma prática terapêutica longa, cara, com resultados duvidosos e sem fundamentação epistemológica clara. Muitas vezes, psicanalistas foram descritos como irresponsáveis por não compreenderem, por exemplo, que patologias como ansiedade e depressão seriam resultados de distúrbios orgânicos e que nada teriam a ver com noções ‘fluídas’ como ‘posição subjetiva frente ao desejo’...o desenvolvimento das ciências cognitivas, em especial das neurociências, teria permitido uma certa redução materialista capaz de demonstrar como todo estado mental (crenças, desejos, sentimentos, etc.) seria apenas uma maneira ‘metafórica’ de descrever estados cerebrais (configurações neuronais) cuja realidade é física. Com isto, estavam abertas as portas para que a própria noção de doença mental pudesse ser tratada como distúrbio fisiologicamente localizável, ou seja, como aquilo que se submete diretamente à medicalização. A clínica pode ter sua racionalidade submetida a uma fisiologia elaborada, poderia, a partir de então, aparecer como o setor aplicado de uma farmacologia”. (p. 14/15)

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Aqui vale dizer que Lacan, embora psiquiatra de formação, como nos diz Safatle, foi resistente às abordagens neurais e agiu em defesa de um conceito de sujeito que seria irredutível a qualquer materialismo neuronal. Mas hoje vivemos um novo tempo. As abordagens neurais estão em todo lugar e desempenham no mínimo um papel importante ao pintar com novas tintas o dualismo mente-corpo ou até mesmo no sentido de que tal dualismo não mais se sustenta à luz do que se sabe sobre mente e cérebro nas neurociências. Eu particularmente tenho estado envolvido nessa temática ao tratar do conceito de “cognição encarnada”. O que se entende por abordagens neurais?

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Abordagens neurais referem-se à sistematização de conceitos originariamente referentes ao funcionamento do sistema nervoso central, tendo o cérebro como destaque, para tratar de assuntos, temas, objetos e processos que vão para além do neural.

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Numa primeira mirada, as abordagens neurais operam na lógica de redução de fenômenos psicossociais e processos culturais a princípios neurais (motivo do temor e crítica de Lacan). Uma segunda visão, alternativa à primeira, é a de que as abordagens neurais nos mostram que o cérebro e todo sistema nervoso central atuam como balizas – ou seja constrangem sem determinar – para tomadas de decisão, para julgamentos estéticos, para atitudes sociais, entre outros. Assim o cérebro (como todo sistema nervoso central) é um fator importante para se iniciar o entendimento da complexidade das ações humanas, sem que elas se reduzam ao processamento neural, central e periférico. Aliás, em algumas versões as abordagens neurais procuram nos mostrar que o cérebro é um ótimo modelo para entender a complexidade no mundo posto ser ele próprio um dos sistemas complexos mais fascinantes na natureza. O funcionamento dinâmico dos neurônios, seu comportamento coletivo gerando padrões sem um controlador central, tornam-se metáforas para imaginar e simular o funcionamento de outros processos que embora distintos em sua natureza, comportam-se como um cérebro: sendo igualmente dinâmicos, plásticos, emergentes e complexos. Daí o prefixo NEURO aparecer em nomes indicando associações antes inimagináveis: neurofilosofia, neuroeducação, neuromarketing etc.

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A educação (e nela incluída a educação física) como prática social e campo de conhecimento não pode passar ao largo do debate envolvido nas abordagens neurais. Creio, e julgo não estar sozinho em falar da importância das abordagens neurais para pensarmos as questões pedagógicas. Nessa reflexão é preciso separar o que há de modismo no uso frequente do prefixo NEURO. Por se tratar de modismo ele traz conhecimentos antigos repaginados pelo prefixo mas que, essencialmente, nada dizem além do já dito, por exemplo na psicologia educacional. A alusão hoje frequente às funções executivas e seu papel na educação é um exemplo. No campo da Educação Física,  os cursos de aprendizagem motora trataram dessas funções extensivamente nos anos 1980 ao mostrar que “o movimento é o resultado de um processo interno” caracterizado por atenção, percepção, tomada de decisão, programação e feedback (cf. Tani, G.; Manoel, E. de J.; Kokubun, E. & Proença, J.E. Educação física escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU/Edusp, 1988).

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Ao darem nova roupagem a conhecimentos estabelecidos da psicologia experimental e cognitiva, as abordagens neurais prestam um serviço para chamar a atenção dos profissionais para conhecimentos que ficaram esquecidos nas prateleiras das bibliotecas abrigados em tratados e periódicos científicos. A expectativa é que as abordagens neurais e o prefixo NEURO chamem a atenção dos profissionais e eles se apropriem de conhecimentos sobre funções executivas, sobre o modo como o cérebro opera, e que possam repercuti-los em boas práticas.  Entretanto, notamos nessa tendência um fetiche e um perigo.

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O fetiche diz respeito ao fascínio que explicações materialistas exercem na compreensão humana. Por materialista me refiro à mágica envolvida em descobrir que funções mentais, representações e imaginários sociais são ancorados em substratos neurais. Reconhece-los nos traz um certo conforto e segurança de que é possível delinear meios para entendê-los e quiçá transforma-los para melhor. Não raro, fetiches se tornam obsessões e daí vem os perigos. No filme “O enigma de Kaspar Hauser” (Eder für sich und Gott gegen alle, Alemanha Ocidental, 1974), dirigido por  Werner Herzog, nos conta a história verídica do jovem encontrado certa manhã numa praça de Nuremberg, na Alemanha, no ano de 1826 . Ele mal sabia andar, articulava poucas palavras e trazia uma carta de autor anônimo dizendo que ele, Kaspar Hauser,  fora mantido em cativeiro durante toda sua vida, preso a uma corrente no chão. O autor anônimo então explica que resolveu libertar o rapaz por não ter mais como cuidar dele e pede às autoridades da cidade que assumam esse papel, providenciando-lhe abrigo, comida e treinamento para ser cavaleiro como seu pai havia sido. Kaspar Hauser depois de passar por várias mãos e cuidados, termina sob os auspícios de um senhor alemão de posses que lhe proporciona uma educação liberal e erudita. Kaspar domina a linguagem falada e escrita a ponto de anunciar a todos que irá contar sua história por suas próprias palavras. No processo, Kaspar desafia a tudo e a todos: ofende a Igreja ao dizer para os pastores luteranos que ele julga difícil acreditar numa entidade divina (Deus) que criou o mundo do nada;  desdenha da aristocracia da cidade por conta de sua hipocrisia; desafia o poder da universidade ao mostrar uma solução alternativa (e por isso inaceitável) para um problema de lógica proposto pelo Professor Catedrático de Logik. A origem de Kaspar sempre foi cercada de curiosidade já que corriam estórias de que ele poderia ser o filho bastardo e indesejável de algum aristocrata que ao revelar sua história poderia expô-lo e, mais do que isso, reivindicar seus direitos às posses desse aristocrata.

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Na interpretação de Izidoro Blikstein (Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade. São Paulo: Editora Cultrix, 1983):

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“Kaspar Hauser torna-se subversivo quando, ao não aceitar os referentes que a sociedade lhe impõe, abala os fundamentos da ilusão referencial. E é sobretudo por essa práxis libertadora (e não por um lance de novela policial) que ele deve morrer.” (p. 86)

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De fato, Kaspar sofre dois atendados, no segundo, ele vem a falecer vítima dos ferimentos adquiridos. As cenas finais do filme se passam no necrotério onde um grupo de médicos fazem a autopsia do cadáver com total atenção para seu cérebro, em ato no qual descobrem certas diferenças anatômicas em uma de suas regiões. O médico que afirma ter encontrado a diferença anatômica se mostra intrigado e ao mesmo tempo aliviado. Afinal, parece ter descoberto o motivo para Kaspar ser tão diferente dos outros.  O escrivão da cidade (personagem emblemático presente ao longo de todo filme lavrando os acontecimentos e juízos a acerca deles num processo legal) acompanhou toda autopsia e registrou os relatos médicos no processo relativo a Kaspar Hauser. Ele lavra ata final desse processo com um sorriso nos lábios e à saída do necrotério o entrega ao cocheiro que lhe aguarda e pede a ele que leve o documento ao cartório da cidade, já que ele decidiu ir andando pois está feliz da vida ao saber que o enigma de Kaspar Hauser e de seu comportamento diferente da norma foi finalmente desvendado: ele tem um cérebro com defeito. Com essa passagem, Werner Herzog prenuncia o perigo que o fetiche pelo cérebro gera: ele é a fonte de todo comportamento, e pode assim ser também a raiz de todos os males. Cérebros tem características comuns que os tornam identificáveis como cérebro, o que não quer dizer que todos os cérebros são iguais. Ainda assim o que é mais comum se torna a norma, o material neuronal é entendido como base para um determinado padrão que seria normal. Alterações anatômicas que fogem ao padrão, ou mais propriamente ao que se definiu como padrão, são tratadas como desvios e assim como fonte de distúrbios.

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As abordagens neurais ao assumirem um reducionismo estrito tratam fenômenos complexos a “nada mais que” o funcionamento da amígdala ou do hipocampo. Essa visão reducionista espartana suporta atitudes e preconceitos que minimizam o papel do educador, do professor ou da professora, e atribui o fracasso da criança às suas funções executivas, aos desequilíbrios da serotonina, a gotas a mais ou a menos de agentes dopaminérgicos nas conexões sinápticas. 

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O problema não é o uso de abordagens neurais na educação, mas sim seu mau uso para medicalizá-la, como se para os males que assolam a educação escolar, ou para os pífios desempenhos em testes acadêmicos, houvesse uma cura bioquímica administrada oralmente.

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É alarmante o uso crescente de ansiolíticos administrado a crianças como forma de fazer frente às reclamações de que elas “não param quietas” para ficarem sentadas na cadeira por duas horas ininterruptas e prestarem atenção no conteúdo a ser ensinado. Inquietas depois de uma, duas horas, “presas” às cadeiras, elas acabam por atrapalhar o “bom andamento do ensino”.

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Todavia, em que pese o fetiche e os seus perigos, não julgo que as abordagens neurais sejam as vilãs. O movimento científico conhecido como neurociências é um alento num mar de crescente especialização na produção do conhecimento.

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Mais do que produzir, as neurociências oferecem um modo de pensar não na parte, no neurônio, mas no todo, na rede.

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Ao trazer à mesa filósofos e engenheiros, físicos e psicólogos, neurofisiologistas e psiquiatras, educadores e arquitetos, as neurociências procuram operar na resolução do problema da Torre de Babel, criando um território comum onde todos se reconheçam e reconheçam o outro e os outros a partir dos conhecimentos do cérebro. A dinâmica global de funcionamento do cérebro, os processos de emergência e plasticidade neuronal, são todos pontos de partida para que se possa trilhar o caminho de um polo a outro, da natureza à cultura, da cultura à natureza, da mente ao cérebro, do cérebro à mente. Mas essa jornada e seus desafios já é outra estória.

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Edison de J. Manoel é Professor Titular da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo onde é um dos líderes do Grupo de Estudo Desenvolvimento da Ação e Intervenção Motora GEDAIM. Foi Pesquisador Sênior na área de Neurociências e Ciências Cognitivas (2014-2016) para a pesquisa sobre Escolas Ativas no Brasil dentro do Programa das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento (PNUD), e membro da equipe de pesquisa e redação do Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano do Brasil (PNUD, 2017). Possui Graduação (1980) e Mestrado (1989) em Educação Física pela Universidade de São Paulo, Especialização em Técnica Esportiva - Atletismo pela Universidade de São Paulo (1983), Doutorado em Psicologia pela University of Sheffield (1993), Grã Bretanha e Livre Docência em Pedagogia do Movimento Humano pela Universidade de São Paulo (1998).

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