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Summum jus, summa injuria:

os acadêmicos como legisladores e a BNCC-Educação Física

por Renan Santos Furtado e Mauro Betti 

em OUT/2019

“Quanto mais justiça (ou mais lei), mais injustiça” seria uma tradução livre do aforismo latino, citável no mundo jurídico, e que ousamos interpretar aqui introdutoriamente: a aplicação muito rigorosa da lei pode gerar graves injustiças. O que isso tem a ver com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Física- Ensino Fundamental? É o que iremos demonstrar a seguir.

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É inegável que o debate acadêmico contemporâneo da Educação Física brasileira traduz em suas linhas uma série de avanços e conquistas que foram tão almejados pelo falado Movimento Renovador da Educação Física das décadas de 1980 e 1990. Talvez, uma das principais conquistas do ponto de vista da legislação educacional no Brasil, seja a consideração de que a Educação Física é um componente curricular da Educação Básica tal como os demais. Todavia, a legitimidade, a construção das chamadas “abordagens pedagógicas da Educação Física” e a massa crítica desenvolvida no âmbito acadêmico-universitário a partir da década de 1980, parecem não mais dar conta de resolver as demandas do campo, sobretudo na Educação Básica.

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No nosso entendimento, a discussão sobre o propósito e a função da Educação Física na escola ganha ainda mais sentido quando as atuais políticas de currículo, em especial a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental, apresentam uma gama de pressupostos (nem todos explicitados) e direcionamentos (alguns bem detalhados) sobre como a Educação Física deve acontecer, e o que se deve ensinar nas escolas. Talvez, estejam ai, ao mesmo tempo elementos de sedução e de perigo para a Educação Física escolar.

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Falamos em “sedução” porque, para muit@s professor@s, seja pela deficiência dos cursos de graduação, seja pela falta de algo construído por el@s mesmos, ou por causa do histórico de esvaziamento de sentido da Educação Física escolar, a BNCC acaba por tornar-se uma espécie de “receita” para o trabalho pedagógico cotidiano. Já o “perigo” encontra-se, justamente, na adesão pouco crítica e pouco reflexiva sobre os conteúdos e a concepção de Educação Física expressos no documento. 

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De antemão, em uma área que se caracteriza pela experiência corporal e pela produção de compreensão (no sentido Freiriano de inteligência) a respeito dessa experiência, não se pode supervalorizar, nem no currículo planejado, nem no currículo realizado, uma listagem de práticas corporais específicas (danças brasileiras, lutas de matriz indígena e africana, esportes de invasão, de rede etc.) como a BNCC parece induzir, mesmo que bem intencionada ao ampliar a diversidade de "objetos de conhecimento". Isso é uma proposição ingênua e arbitrária, tendo em vista a diversidade de práticas e experiências que as crianças e jovens vivenciam dentro e fora das escolas em todo o Brasil.

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Essa compreensão também nos leva a questionar o dogmatismo das denominadas "abordagens pedagógicas da Educação Física" (ou pelo menos a interpretação dogmática que muitos delas fazem), o que nos parece incoerente com os desafios contemporâneos da Educação Física escolar. Indagamos, por exemplo: se o/a professor/a identificar-se com a perspectiva crítico-superadora da Educação Física, e considerar que o conhecimento a ser socializado deva ser baseado unicamente em uma compreensão materialista da história, quando problematizado o fenômeno do “jogo”, não precisará agregar em seu pensar pedagógico as clássicas reflexões sobre produzidas por Immanuel Kant, Friedrich Schiller, Johan Huizinga, Roger Caillois e Ludwig Wittgenstein?

 

Acadêmicos discursam fervorosamente e buscam construir e tornar hegemônicas suas próprias narrativas de como as coisas devem acontecer na escola. Mas esse é mesmo o seu papel, e não deveriam ser condenados por isso, pois até aqui estamos no debate propriamente “acadêmico”, no campo das proposições e das ideias. Contudo, portadores e representantes de crenças arraigadas, profissionais do mundo acadêmico-universitário frequentemente assumem o papel de orientadores de políticas educacionais, as quais se traduzem em legislação mais ou menos impositiva, que alcançam com maior ou menor intensidade os cotidianos escolares. Sem retroceder muito na história brasileira, podemos citar o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documento do governo federal que, ao final da década de 1990, incorporou algumas das ideias do Movimento Renovador da Educação Física.

 

Agora, com um nível de detalhamento e alcance poucas vezes visto (ou talvez nunca visto) na história da educação brasileira, a BNCC impõe-se como modelo único para cerca de 130 mil escolas de ensino fundamental do nosso país, do Rio Grande do Sul à Roraima, da Paraíba ao Amazonas.

 

Limitando a nossa análise à Educação Física, percebe-se como um grupo de acadêmicos da área, ao liderar a elaboração da BNCC e buscando implementar suas próprias ideias e crenças (aliás, divergentes entre si), atuaram, mesmo que involuntariamente, como legisladores pedagógicos.

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Porque, ao impor certa ordenação e classificação de conteúdos (os “objetos de conhecimento”) flagrantemente arbitrárias, bem como obrigatoriamente vinculadas a detalhados (e por vezes confusos) objetivos de aprendizagem (as “habilidades”). Porque, se faz sentido pensar que, em matemática, não se deva ensinar equação de 2º grau antes de equação de 1º grau, ou ensinar multiplicação e divisão antes de soma e subtração, não há nenhuma – repetimos, nenhuma – razão plausível para que, por exemplo, "esportes de marca" antecedam "esportes de campo/taco", ou que "jogos e brincadeiras" estejam presentes apenas na etapa inicial do ensino fundamental, e "jogos eletrônicos" apenas na etapa final. Tais decisões deveriam caber exclusivamente aos sistemas escolares (caso das escolas públicas) ou às escolas isoladas (caso das escolas privadas).

           

Por exemplo, mais importante do que escolher alguma modalidade esportiva para uma turma de 8º ou 9º ano, ou mesmo para o Ensino Médio, seria preciso refletir sobre quais elementos do fenômeno “esporte” poderíamos abordar nesses anos/etapas de escolarização, e, a partir daí, sugerir modalidades específicas para melhor articular os processos de ensino e aprendizagem com tal intencionalidade pedagógica, tendo em vista ainda as singularidades do lugar e dos sujeitos da aprendizagem (os/as estudantes).

 

Ao final e ao cabo, como já estamos assistindo, tais conteúdos e objetivos serão tomados como “o” currículo, e não uma “base” para que cada sistema escolar e cada escola construam o seu próprio. Efeito deletério da BNCC, reside aí a primeira parte do aforismo jurídico citado ao início deste texto: muita justiça, muita lei! E onde está – ou estará – a segunda parte, a injustiça? Já ouvimos, aqui e ali, se dizer que “não pode” práticas corporais de aventura nos anos iniciais, porque não está na BNCC, ou que “não pode” jogos de tabuleiro nas aulas de Educação Física porque contraria a concepção de “práticas corporais” da BNCC.

 

Tais "proibições" põem à margem os fundamentos das práticas corporais que são da tradição da Educação Física (lúdico, competição, agonismo, vertigem etc.) e limitam arbitrariamente as experiências possíveis aos sujeitos da aprendizagem. É certo que, em defesa da BNCC-Educação Física, se pode dizer que ela propõe o mínimo obrigatório, que nada impede que as escolas ampliem os objetos de conhecimento em seus projetos político-pedagógicos. Mas aí voltamos à primeira parte do aforismo:

 

é muita lei para poucas aulas de Educação Física, há um excesso de conteúdos e objetivos, e o mínimo tornar-se-á então o máximo (obrigatório) possível.

 

Portanto, temos na BNCC-Educação Física do ensino fundamental um caso típico em que professor@s universitári@s, cooptados pelo Estado e por organizações da sociedade civil portadoras dos mais diversos interesses no campo educacional, assumiram o papel de legisladores pedagógicos. Renunciar a tal papel seria o primeiro passo em direção a uma opção radical: privilegiar o trabalho colaborativo no "chão da escola", para que docentes universitários e da educação básica fundamentem e reinventem currículos e práticas pedagógicas preocupadas com a densidade e a organização lógica do conhecimento da Educação Física.

 

Mas assumir privilegiadamente tal papel não exigiria o abandono daquele que foi assumido por parte dos acadêmicos desde o Movimento Renovador da Educação Física: fundamentar teoricamente as práticas pedagógicas. O que nos parece é que muitos acadêmicos ainda não entenderam que esse tradicional papel mudou nos dias de hoje:

 

não mais dizer o que os/as professor@s devem fazer, mas ajudá-l@s a melhor compreender o que já fazem.

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Sobre os autores:

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Renan Santos Furtado  é professor de educação física da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, em Belém. Mestre em Educação pela UFPA. Atua como pesquisador em práticas corporais e processos de escolarização.

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Mauro Betti é pesquisador e escritor residente em Bauru (SP), foi docente na USP e na UNESP. Licenciado e mestre em Educação Física pela USP, doutor em Filosofia da Educação pela Unicamp. Autor de vários livros e artigos que se tornaram referências na Educação Física.  

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