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Cis-heteronormatividade, MMA, Educação Física e sociedade

por Juliana Jardim

em ABR/2020

ALERTO INICIALMENTE que este texto poderá provocar alguns desconfortos. O primeiro possível desconforto se deve ao fato de que usarei aqui linguagem não-binária. Ou seja, não me aterei apenas ao binarismo masculino versus feminino no texto escrito e, definitivamente, não recorrerei às generalizações no masculino universalizante, como preveem as normas cultas da língua portuguesa. Vivemos em um mundo onde existem pessoas com expressões de gênero que vão além do binário homem-mulher, há multidões de pessoas não-binárias no mundo (p. ex.: travestis, gênero fluidos, agêneros etc.). Assim, aproveitarei para sinalizar através deste texto como uma linguagem de fato inclusiva precisaria subverter as normas cultas da língua portuguesa, via criação de um artigo neutro, não-generificado, tal como nas propostas de utilização da letra “x”, da letra “e”, ou de símbolos gráficos como a “@”. Assim, ao invés de falarmos em “alunos” ou “alunos(as)” para nos referirmos a uma turma discente, falaríamos em “alunxs”, “alunes”, “alun@s”. 

O segundo incômodo viria exatamente do fato deste texto colocar sob questionamento possíveis certezas que talvez algumes possuam em relação a questões de gênero. Neste sentido, quando tomei contato com a proposta de Educação Física Diagonal, des colegas Mauro Betti e Bruna Eliza, o que me chamou a atenção de imediato foi a premissa de que não é possível seguirmos encerrades em dualidades.

 

Binarismos entre “corpo vs. mente”, “natureza vs. cultura”, “ciências naturais vs. ciências humanas”, dentre tantos outros, há muito tempo limitam nossos saberes e atuações profissionais.

 

Ora, o ser humano possui uma fisiologia e possui cultura, divisões em caixinhas apenas nos limitam e empobrecem. No campo de gênero em particular, como eu dizia anteriormente, o binarismo Homem vs. Mulher está longe de contemplar todas as subjetividades existentes. Falo aqui de pessoas reais, que existem, sentem, lutam e tantas vezes sofrem violências diárias. E muitas são assassinadas, pelo simples fato de suas subjetividades ainda não serem aceitas como legítimas pela maior parte das pessoas.

Possíveis incômodos devidamente apresentados, objetivo aqui apresentar e discutir o conceito de "cis-heteronormatividade". Em pesquisa vinculada ao programa de doutorado que finalizei recentemente (“It´s time”! MMA feminino, mercado da beleza e cis-heteronormatividade: uma etnografia multissituada com lutadoras de MMA, Juliana G. Jardim, Tese de Doutorado, 2018), realizei uma etnografia com lutadoras brasileiras de MMA – sigla para Mixed Martial Arts, ou Artes Marciais Mistas, em português. Trata-se de uma modalidade de combate que combina técnicas provenientes de lutas diversas (boxe, jiu jitsu, muay thai, wrestling, kickboxing, karatê, judô etc.), e tem no estadunidense UFC (Ultimate Fighting Championship) a maior organização da modalidade. As reflexões que aqui apresento têm origem neste estudo.

O MMA feminino emergiu no cenário esportivo nos últimos anos, e teve sua coroação quando da implantação da primeira categoria feminina no UFC em 2013, fator que impulsionou fortemente seu crescimento e visibilidade no cenário mundial. Identifiquei e analisei os fatores que culminaram no recente crescimento do MMA feminino no Brasil, com foco nas questões relativas à performatização de gênero das lutadoras e nas representações midiáticas de gênero relativas a elas. Parti de uma dimensão microestrutural, o universo do MMA feminino, para buscar compreender aspectos macrossociais que situassem as estratégias pessoais dessas atletas em responder, via esporte, às mudanças significativas no campo das relações de gênero e das sexualidades não normativas no Brasil contemporâneo.

Identifiquei a existência de um "Mercado da Beleza" no MMA praticado por mulheres, que aumenta as chances de sucesso e fama para as lutadoras que, além de apresentarem um bom desempenho atlético, também forem lidas como belas e sensuais, dentro de padrões cis-heteronormativos racializados. Isto é, há preferência por atletas brancas, de cabelos longos e lisos, sem músculos muito proeminentes, heterossexuais, que sejam lidas como belas, femininas e sensuais. O maior expoente do Mercado da Beleza por ocasião da pesquisa era a lutadora estadunidense Ronda Rousey (agora aposentada do MMA).

Rounda Rousey,estadunidense, lutadora de MMA  Fonte Capa da revista ESPN, EUA, Nov. 2015.

Rounda Rousey,estadunidense, lutadora de MMA 

Fonte: Capa da revista ESPN, EUA, Nov. 2015.

Mas afinal, o que significa Cis-heteronormatividade? Em um exercício de síntese conceitual, é possível afirmar que a cis-heteronormatividade corresponde às normas político-sociais que impõem práticas e códigos cisgêneros e heterossexuais a todas as pessoas. 

Ficou evidente para mim que, quanto mais os corpos das lutadoras de MMA fogem do que hegemonicamente é entendido como um corpo feminino (cisgênero), maior é também o incômodo, repulsa e temor que estes corpos geram, pois transgridem os padrões cis-heteronormativos. Adensando o conceito, quando falo em cis-heteronormatividade estou entendendo que a cisgeneridade, tanto quanto a heterossexualidade, constitui um regime político-social que regula nossas vidas. A heteronormatividade corresponde às normas que impõem práticas e códigos heterossexuais a todas as pessoas, independentemente de orientação sexual (A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização, Richard Miskolci, Sociologia, 2009). Já a cisnormatividade corresponde à “normatividade que incide, particularmente, sobre as diversidades corporais e de identidades de gênero” (Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise etnográfica da cisgeneridade como normatividade, Viviane Vergueiro, Dissertação de Mestrado, 2015, p. 229).

A cisnormatividade impõe o modelo cisgênero para todas as pessoas, sejam elas trans ou cisgêneras.  Por exemplo, pessoas trans são socialmente consideradas bem-sucedidas em seu processo de transição quando, por meio de hormônios e cirurgias (que pressupõe também a redesignação sexual), conseguem aproximar-se mais dos padrões cisgêneros hegemônicos de masculinidade e feminilidade.  No caso das lutadoras de MMA, minhas interlocutoras eram todas mulheres cisgêneras, o que não impediu que aquelas que se afastavam do padrão imposto pelo Mercado da Beleza sofressem discriminações cis-heteronormativas. Desenvolvo abaixo o caso de uma das lutadoras brasileiras com maior reconhecimento nacional e internacional, Cristiane Cyborg.

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Cristiane Cyborg, brasileira, lutadora de MMA

Cyborg é, com frequência, vítima de ataques cissexistas nos quais a acusam de se parecer com um homem cisgênero ou de ser uma mulher trans. Ataques potencializados pelo fato de a atleta ter sido flagrada (e punida) em exame antidopagem no passado, o que a coloca sob constantes suspeitas de uso de esteroides anabolizantes a base de testosterona. A título de exemplo, citarei, a seguir, dois episódios envolvendo discriminações sofridas pela lutadora e que ganharam maior visibilidade por envolverem outros nomes importantes no universo das Artes Marciais Mistas. 

O primeiro episódio ocorreu em uma coletiva de imprensa na qual o presidente do UFC, Dana White, imitou o andar que, segundo ele, seria de Cyborg, e disse que ela andando se parecia com Wanderlei Silva – renomado lutador brasileiro de MMA – de vestido.  Em outro episódio, foi Joe Rogan, comentarista estadunidense do UFC que, acompanhado de um comediante, disse que, para poder assinar um contrato e competir no UFC, Cyborg precisaria cortar seu pênis, e obteve a concordância do outro, afirmando que ela era a única lutadora que “cortava” o peso antes das lutas cortando o pênis. Estes comentários, que geraram risos na audiência, atacaram diretamente a lutadora brasileira, cuja aparência física não se encaixa no padrão de feminilidade estabelecido a partir da cis-heteronormatividade. 

Para encerrar, um exemplo concreto de como promover inclusão de gênero:

quando cada ume de nós, docentes, nos depararmos com uma lista de alunes, vamos pedir que todes se apresentem, digam com qual nome querem ser chamados, e com quais pronomes.

 

Recentemente tive uma aluna que na lista de chamada estava registrada com seu nome de registro civil, no masculino, mas que me contou que se chama Ana, pessoa feminina não binária, e que deveria ser tratada no feminino. Que todes abramos nossas cabeças e nossos olhos para enxergar as Anas que nos rodeiam. Elas estão aí, mais perto do que o olhar cis-heteronormativo permite ver.

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Juliana Jardim é mulher cisgênera, sapatão, transfeminista interseccional, gorda body positive e anti-gordofobia. Possui formação acadêmica multidisciplinar: Licenciada em Educação Física, Mestra em Educação e Doutora em Ciências Sociais, cursados em diferentes campis da Unesp. Realizou estágio de Doutorado no Departamento de Estudos de Gênero da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Atualmente integra o Grupo de Pesquisa Transgressões – Gênero, Sexualidade, Corpos e Mídias Contemporâneas, da Unesp-Bauru, e é Mentora da TODXS Brasil no Projeto Afronta Digital.

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