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Texto gerúndio*:

Corpo-arte-política

por Liliane Oraggio 

em NOV/2019

“Escute só
Isto é muito sério.
Anda,
Escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente
esquisito.
(...)
Este começo de século será
Nosso batismo de vôo
Para a persistência no amor”.

 

(Trecho do poema ‘Fevereiro’, de Matilde Campilho, in Jóquei,
Lisboa, Ed. Tinta da China, 2014)

Fragmento Norte
Um inventário de fragmentos revela-­se a forma mais honesta e fluida de tocar em afetações e estranhamentos provocados por leituras e audições e diálogos, acontecidos em curto período e longe de casa. Sem metáforas, a pretensão é performar em palavras um esboço de um corpo de conhecimento com veias ambientais, medula indígena, epiderme africana, músculos orientais, pêlos transoceânicos e alma contemporânea. Escutar e escrever, escrever e escutar o que não necessariamente está em ordem mas diz do cuidado possível, da micropolítica que é resistir no burilar da própria presença para o Outro-­Multidão, cada um outro e todos os outros.

Fragmento Sul

Embaraço. Palavra que ata à exigência do desempenho e sua exaustão intrínseca. Embaraço pela tentativa de tornar a forma rígida (do que seria um texto) mero detalhe. Corpo embaraçado sai grávido de futuro do lugar comum, da cama quente às cinco da manhã e vai vagões-­e–trilhos-­e-­conexões-­e-­ônibus a dentro. Há dentro e há fora. Corpo embaraçado sobe a serra para depois descer e baixar na baixada onde estão em diálogo outros corpos, falando sobre trabalho corporais, em experiências subjetivas radicais. O nível de ruído é alto, o sol lambe as beiradas do pátio e a sensação térmica é de quarenta graus. Horas abafadas tentando absorver papa finíssima, transatlântica que desvela poéticas e experimentações de linguagem. Assim, fica muito concreto: o cérebro é massa e com o calor derrete. E resiste e retém o conceito: a ambiguidade é estratégia anti-­captura capitalista, mercadológica, padronizadora. 

A moça entrega em domicílio sua coreografia, entra nas casas e dança entregue a novas modulações, bem longe do palco, no cerne do espaço-­tempo doméstico. Ela entrega e entrega-­se. (Claudia Muller, Performance dança contemporânea em domicílio, Rio de Janeiro, 2005). Ação de expor a tensão entre arte e dinheiro, entre artista e sobrevivência. “Posso fazer a entrega?” Produto? Obra? Processo? “Se faz arte, vive de quê?” 

A condição de transeunte bailarino permite, mesmo em pleno trânsito caótico, não ser atropelado. E permite beijar longamente zombando das catracas eletrônicas que medem apenas o tempo do trabalho. Arranhando a ferida aberta da interdição do afeto na rotina, da rotina. (Grupo Les Commediens Tropicales, À Deriva, São Paulo, 2014.)

Em várias línguas e em nenhuma língua é possível moldar as palavras no oco da oca, para saírem quentes e embaralhar o cérebro de quem diz e de quem assiste, desconstruir entendimentos para, finalmente, ouvir a música dos que ousam desafinar em pleno encontro. (Sleep no More, Teatro Imersivo).

Rituais de transformação acontecendo em muitos momentos nas praças, nas esquinas, nas escadas do monumento, nos trens, na intimidade das casas, das salas de aula e até mesmo na caixa preta dos teatros. Mil jogos vivos para propor o encontro, para chamar o pulsátil em cada um pela arte, ao mesmo tempo enraizada e nômade.

Fragmento Oeste
-­De onde você vem?
-­Qual é o lugar que significa casa para você?
-­A escrita e o corpo, casas geminadas, orientadoras de navegação.

 

Velhos sentam-­se nas calçadas e conversam entre si e com as crianças. Assim a educação pode seguir acontecendo, o diálogo ao ar livre, em círculo. Cena de África, o mesmo continente que aterra Burkina Faso. Lá quando alguém comete um delito, todos da tribo se reúnem em volta da pessoa e repetem muitas vezes o nome de batismo daquela pessoa. Para que ela lembre quem ela é e possa reparar seu erro (O Espírito da Intimidade, Sobonfu Somé, Ed. Odysseus, 2004).

 

Neste momento em que o racismo e todos os tipos de discriminação estão em carne viva, somos, cada um de nós, cápsulas de potencial antídoto contra toda a forma de exclusão de negros e queers (estranhos) de todas as faces. A arte e a dança são potentes catalizadoras de discursos de vigilância e reparação, reverberantes capazes de criar novas camadas de inclusão. A política acontece nos gestos dos performers e essas peças, todas espalhadas por continentes, são ações geradoras de consciência e conhecimento vivo.

Apenas sentir empatia já não basta, é preciso fazer algo que mova, que co-mova para o fato de que a presença negra está na urdidura do tecido social, rústico tecido embebido de sangue, que nesse movimento de falar por si impõe respeito e redefine territórios concretos e existenciais.

Falamos de cárceres, de mulheres negras, rés, que performaram acusação, defesa, julgamento, na lógica da justiça branca (Ocupação Rés – Mulheres em Cárceres, Corpórea Companhia de Corpos, 2019). Mas, nem só de grades são construídas as prisões. Corpos urbanos, submetidos à lógica de exploração, estão presos no cansaço de produzir sem parada. A arte pode escorrer pelas frestas de humanidade dessas estruturas densas de carne, osso e sangue e ser sopro de vida, bem no meio do caminho, bem na nesga do cotidiano, furando a lógica de guerra em que nenhum ser contemporâneo escapa. Nem mesmo machos nem brancos nem héteros nem supostos privilegiados. A branquitude precisa aprender muito sobre discernir as diferenças para habitar os desafios da convivência. Mas, para além das polarizações, todos nós somos e estamos inseridos na mesma ecologia e se o céu cair, se os índios deixarem de segurar o céu, ele cairá sobre todos. (A queda do céu – Palavras de um Xamã Yanomami, Davi Kopenawa e Bruce Albert, Cia. das Letras, São Paulo, 2010).

Fragmento Leste
“O que é necessário para sobreviver hoje?” 

Somos criadores do mundo assim como o mundo nos cria.


Em meio a ondas gigantes, a sobrevivência é possível nas menores braçadas. Perceber a ecologia é estratégia mínima de sobrevivência, é nos microgestos, micropassos que o processo formativo se faz, constantemente impulsionando a vida a prosseguir, num continuum infinito. Mesmo que não estejamos conscientes, os menores gestos para a genuína manutenção da vida estão sendo produzidos o tempo todo. “O gesto menor está nas linhas do dia-­a-­dia, acordado,vivo. É a força que faz tremer as linhas que compõem o cotidiano” diz Erin Manning, autora de Minor Gesture, propondo incluir micropolíticas como ação transformadora, de potência atômica contra estruturas macro. A aproximação desta proposta com o modo celular com que o próprio corpo funciona, se movimenta e pensa para produzir a si mesmo e aos ambientes, ressoa com o próprio efeito da arte -­ em si um caminho e um vetor para o futuro.

A arte é capaz de mudar a chave do racional para o emocional, de desligar
o córtex-­frontal e acionar o cérebro límbico atirando o espectador num outro estado de consciência.

Então, “as ressonâncias estarão ativadas de modo irreversível”, assim como as “Políticas do Menor”, tal qual Erin Manning nos apresenta, podem entrar em curso, propondo novas conexões e novos modos de viver a vida, novos encontros, novos fluxos de pensamento e novos fluxos entre as pessoas. Das pequenas variações nesse processo vivo emergem novas decisões que vem de um, porém impactam o coletivo. Perguntar de novo e de novo, não acomodar nas versões instituídas, seriam as práticas para nos manter despertos? “O que mais a vida poderia ser?” Assim como as pequenas partículas de cúrcuma, molhadas pela chuva, trazidas pelo vendo podem formar a cor sobre a seda aberta, as ações moleculares, minúsculas e muito conscientes, podem impregnar-­se no tecido social, micropolítica de resistência que escolhe e sintetiza para prosseguir. Mas, e a exaustão a que estamos submetidos? Como vencer esse esgotamento contemporâneo que dilui e adoece a presença?

Fragmento Centro
“Com o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os “dons do escutar espreitando” e desapareceria a “comunidade dos espreitadores”. (...) O “dom de escutar espreitando” radica-­se precisamente na capacidade para a atenção profunda, contemplativa à qual o ego hiperativo não tem acesso. Quem se entedia ao andar e não tolera estar entediado, ficará andando a esmo inquieto, irá se debater ou se afundará nesta ou naquela atividade. Mas quem é  tolerante com o tédio, depois de um tempo irá reconhecer que possivelmente é o próprio andar que o entedia. Assim ele será impulsionado a procurar um movimento totalmente novo. (...) A dança, por exemplo, ou balançar-­se representa um movimento totalmente distinto. Só o homem pode dançar. Possivelmente no andar é tomado por um profundo tédio, de tal modo que por essa crise o tédio transponha o passo do correr para o passo de dança. Comparada com o andar linear, reto, a dança com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho”
(A Sociedade do Cansaço, Byung-­‐Chul Han, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2017).


Dissecar a exaustão como nossa condição atual, em que o esgotamento é neuronal e capaz de provocar colapsos profundos na vitalidade, impulsiona a consciência a procurar novos caminhos e a desconstruir a naturalização deste estado em que estamos ainda muito vivos para sermos considerados mortos e muito mortos para sermos considerados vivos. O que um prisioneiro muçulmano tem a ver com um funcionário da bolsa de valores? Embora os graus de nutrição e “privilégio” sejam bem distintos, ambos podem se tornar-se apáticos, incapazes de fazer novas conexões.

 

A capacidade contemplativa também é necessária para aprender e produzir conhecimento. Professores que atulham assuntos e despejam mais de quinhentas palavras por minuto e dezenas de referências acopladas umas as outras podem ser valorizados nos critérios do desempenho, mas sobrecarregam a plateias mudas, aturdidas por tanta ‘inteligência’ contida no “power point”. E qual seria o menor gesto para ser antídoto a essa distorção? Ler junto, ler um livro físico, de papel-­árvore, ouvir e pronunciar as palavras escritas por outros para outros, para além de nós. Essa prática ancestral é vincular, isto é, permite a conexão humana. Justamente, colegas são aqueles que leem juntos.

 

O resgate dessas ações simples, que dependem fundamentalmente da presença e da tecnologia humana, talvez sejam saídas potentes para restaurar a capacidade de contemplação, sem a qual a vida em plena forma se esvai.

Fragmento Síntese
Anotar um diálogo, fresco, escorrido das menores ações dos interlocutores é escutar a espreita. Em atitude de colheita, captar a oralidade usando papel-­e-­caneta-e-­mãos-­e-­ouvidos-­e-­rosto-­e-­Língua é performar e formar vida.


Talvez uma forma de cuidar e desintoxicar profundamente seja registrar o que é dito e as pausas. A conversa pode ser arte com texturas e temperaturas, fundo e figura, elementos compostos reveladores de lógicas de vida. “Como cada um faz o que faz?” é indagação prenhe de inesgotáveis sentidos, prenhe de revelações sobre comportamentos, escolhas, sínteses particulares que podem reverberar no coletivo. Em uma sala de aula, um grupo grande concorda que alguns vão se deslocar e outros permanecerão sentados. Depois de alguns minutos, trocam-­se as duplas e iniciam-­se outras conversas. O escriba se desloca e...

Diálogo 1
­‐Me chama atenção como a vida ativa é hiper-­estimulada e tudo ser reduz ao trabalho. Será que isso não está naturalizado demais para que essa estrutura possa ser mudada?
-­ Qual seria o cuidado para essas pessoas que são vítimas do esgotamento, da depressão, dos déficits de atenção? Pois, elas podem se recuperar, mas terão que voltar para a lógica da sociedade que cobra desempenho.
-­ Será que na clínica não cuidamos para que as pessoas voltem para o desempenho? Como peças recuperadas que são recolocadas na engrenagem...


Diálogo 2
-­Me desculpe, mas antes de continuar tenho que ir ao banheiro, digo deixando a parceira sozinha, tentando ir e voltar rápido. Mesmo assim, minutos se passam e a conexão não se esvai. Pronto! Voltei e no trajeto fiquei justamente pensando que a vida ativa e a sociedade do cansaço ensinam a não respeitar os ritmos biológicos e a estar constantemente desconectado do corpo. A excitação é excessiva e que vale é continuar na tarefa, segurando a respiração, o xixi, a fome, a sede. Essa lógica caberia em uma empresa, mas aqui, na Universidade, não cabe.

-­Eu fiquei aqui, em silêncio e foi muito bom. E não perdemos a conexão, ao contrário você teve o seu tempo, teve respeito e escuta e estamos aqui juntas observando o acontecimento, que inclui o corpo em sua condição mais elementar.


Diálogo 3
-­Qual o seu nome?
-­Kidauane, que quer dizer rio estreito. É um nome de origem indígena, fala de um rio em que poucas pessoas podem adentrar. Muitos adentram nessa lógica da exaustão, cada vez mais... o corpo paga caro por isso e a morte do desejo se produz em larga escala, diz com olhar distante a moça de 26 anos, em pleno desânimo com a situação do país, com o futuro mais do que incerto.
-­É, a sociedade do cansaço é aqui mesmo, não é lá no livro. Mas, por onde anda o desejo com tanta exaustão?

-­Ah, com tudo isso a energia é entristecida, né? O desejo não cessa, mas fica entristecido. Não se realiza na vitalidade...


Diálogo 4
-­Todas as pessoas deviam ter direito a um ano sabático, acredita Letícia, 46 anos, psicóloga, pesquisadora da relação entre saúde mental e racismo, na lida nos dispositivos públicos de saúde mental, violência doméstica, HIV/Aids, mãe de três adolescentes, casada, negra, exuberante, politizada.
-­ Pois, pra mim, essa história de ano sabático é uma idealização, como achar príncipe e casar num castelo. Vem dos modelos norte-­americano e europeu, depois de seis anos trabalhando, o funcionário para um ano como prêmio. O salário continua caindo na conta. Na nossa realidade isso não cabe. Penso que a gente tem que fazer pequenas coisas e se premiar todo dia mesmo...
-­É verdade. Isso já faço. Na rotina converso muito com meus filhos, cuido da casa, trabalho muito e preciso de um tempo para ficar sozinha. Moro perto da praia e é para lá que eu às vezes levo minhas leituras, às vezes não. O mar dá 
continência espiritual. Só o mar dá conta, lá consigo me esvaziar e criar de novo. Me cuido assim e volto outra. Aí, sigo a vida...


Diálogo 5
-­No exercício de se apresentar e reapresentar, como você era antes do processo e como é agora?
-­ Começo sendo precário e termino sendo mais precário ainda. Não sou só homem. Não sou só hétero. Não sou só branco. Eu sou vocês todos. Sou grato. E o meu nome é Conrado.
-­ No rebatimento de reapresentar... Chego com muitas dúvidas e saio com ainda mais perguntas. Não sou só de fora. Não só privilegiada. Não só cinquentenária. Não sou só branca. Não compreendo só português. Sou cada um que é parte do caminho. Sou grata. E meu nome é?

*Sobre este artigo:

Este artigo foi produzido a partir da participação da autora no evento "CARTOGRAMA", no primeiro semestre de 2019, que fez parte da Disciplina Corpo,  Arte, Performance e Política, ministrada por Marina Guzzo e Conrado Federici, no programa de pós-graduação da Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista.

CARTOGRAMA é um encontro e compartilhamento de formas de pensar, conhecer, produzir e criar em arte e ciência, que acontece desde 2014. A Profa. Dra. Marina Guzzo é sua idealizadora e realizadora em uma ação conjunta com os professores pesquisadores do Laboratório Corpo e Arte da UNIFESP - Conrado Federici, Flávia Liberman e Vinícius Terra. Aberto à artistas, estudantes e pesquisadores que estejam interessados em trocar procedimentos e modos de existir nas pesquisas envolvendo artes do corpo. 

ACESSE AQUI  O SITE DO CARTOGRAMA 

Sobre a autora:

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Liliane Oraggio   é jornalista formada pela PUC-SP, especializada em temas do comportamento, terapeuta corporalista e acompanhante terapêutica. No Laboratório do Processo Formativo, atua na clínica e na  coordenação do grupo aberto de supervisão "A Lógica dos Corpos em Presença", juntamente com a mestra Regina Favre. Autora de Ouço Vozes – escuta, registro de diálogos e epifanias no Acompanhamento Terapêutico (Ed. Oraggio/Colmeia, 2017); Ministra as oficinas "Ouço Vozes" e "Corpo e Escuta e Escrita – Experimentos Textuais Formativos" para alunos da pós-graduação da UNIFESP/Campus Baixada Santista, como parte do Mestrado Interdisciplinar em Ciências da Saúde, sob orientação da Profa. Flavia Liberman Caldas.

 

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